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20 horas de voo, 9 mil Km e um militar português a salvo

A Força Aérea, através da Esquadra 501 – "Bisontes", realizou o transporte aeromédico de um militar do Exército português, ferido em Mobaye, na República Centro Africana, onde se encontrava ao serviço da Organização das Nações Unidas, na operação MINUSCA.

A missão, que envolveu duas tripulações e dois militares da Direção de Saúde da Força Aérea, decorreu de dia 7 para 8 de julho. Os militares da Esquadra 501 quiseram contar em pormenor como se prepararam para esta solicitação inopinada e como correu a missão em que um C-130H realizou cerca de 20horas de voo e mais de 9 mil quilómetros.







A notícia

07 de julho de 2017. Começam a chegar notícias de um militar do Exército Português ferido na República Centro Africana (RCA), onde se encontra ao serviço da Organização das Nações Unidas (MINUSCA). Para muitos a informação passa despercebida. Para outros - familiares, amigos e camaradas -, a notícia traz confusão e angústia: afinal, um dos 160 camaradas destacados na Força Nacional Destacada (FND) encontra-se debilitado, num país com fracas infraestruturas que permitam responder a situações mais críticas.

Ao mesmo tempo, há um conjunto de militares que terá de desmarcar todos os compromissos dos próximos dias. Esses militares sabem que são a ponte que liga Portugal aos portugueses espalhados pelo mundo. Não fosse deles o lema: “ Onde Necessário, Quando Necessário”. Essa Esquadra é a 501 - “Bisontes”.

A Base

A Base Aérea nº6 (BA6) concentra grande parte do Poder Aéreo Nacional. É a base das aeronaves C-130H, C-295M, EH-101 Merlin e Falcon 50. Meios completamente diferentes e versáteis, que não só têm conseguido responder às exigências da extensa área de responsabilidade Nacional para Busca e Salvamento, como permitem destacar meios para missões da mais diversa índole: seja no Mediterrâneo, a apoiar a crise de refugiados; a garantir transportes aeromédicos nas regiões autónomas; a realizar transportes táticos no Mali; e a efetuar transportes de órgãos, que muitas vidas salvam. Na BA6, a distância entre uma aeronave estar parqueada no Montijo ou estar a descolar para os mais diversos destinos é apenas uma...um telefonema!

E neste momento o telefone toca! A suspeita confirma-se! O camarada ferido vai ser transportado da RCA! É hora de chamar os Bisontes!

Bangui é a capital da RCA e dista do Montijo 2600 milhas náuticas – 4800 quilómetros - e a ordem é para descolar o mais rápido possível. Uma missão desta magnitude implica dois troços com mais nove horas para cada lado e envolve muitas variáveis.
Para missões já previstas, as tripulações começam a preparação com perto de 30 dias de antecedência. Para esta, acabada de despoletar, temos apenas algumas horas. Nada que a BA6 e a Esquadra 501 não estejam habituadas e não consigam resolver. Há que coordenar todos os meios necessários para que a missão corra com a maior segurança e condições possíveis. Exige comunicação, coordenação e prontidão!

A preparação

Muito trabalho é desenvolvido nos “bastidores”. Os telefones tocam em simultâneo, e diversos militares de serviço, das mais diferentes especialidades, dão resposta a todas as solicitações. Há quem reúna informações sobre condições de segurança (o cenário é quente), há quem estude a meteorologia em rota e no destino (a zona de convergência inter-tropical apresenta os seus desafios), há quem se desloque para a Base para ajudar no que for preciso (apenas “ porque sim”, porque se sabe que a logística é muita e o tempo é escasso). Afinal, hoje há “Bisontes” que já não vão estar em casa, há “Bisontes” que já não vão jantar com a família. Hoje, há “Bisontes” que não vão festejar o aniversário do casamento, não vão dar o beijo de boa noite aos filhos, não vão ver aquele concerto para qual já tinham bilhete. Hoje, os “Bisontes” vão onde são mais precisos. Vão buscar um camarada, um Português, ferido em combate.

A equipa

Enquanto Portugal janta e se prepara para ir dormir, homens e mulheres da Força Aérea preparam um Hércules C-130H para a missão inopinada. O C-130H é uma aeronave polivalente, e O transporte aeromédico é uma das componentes de missão do vasto leque de missões que o Hércules pode executar, conseguindo operar tanto no local mais tranquilo, como numa pista de terra-batida, no meio de um cenário de guerra.

É essencial planear para o pior, e por isso 12 militares da Esquadra 501 e outros 2 militares da Direção de Saúde são chamados a constituir uma equipa reforçada, que se desdobrará em duas tripulações para fazer frente ao que vai ser um longo dia. Num transporte médico, o tempo é vital. O plano, portanto, envolve duas tripulações que se revezam entre elas.

A missão

Começam a juntar-se todas as peças do puzzle. A possível ameaça do local obriga a uma indumentária combat ready, e o material é disponibilizado à tripulação. A meteorologia também não deverá condicionar a missão. O destino poderá ser um de dois: Bangui ou Mobaye. O primeiro, um aeroporto internacional com bastante infraestruturas. O segundo, uma pista longa, mas semi-preparada, em terra compactada. Atravessar metade de África duas vezes em 24 horas pode trazer muitos imprevistos, e é fundamental o balanço entre a urgência da partida e necessidade de precaver todas as contingências. A experiência acumulada da Esquadra, que marcou presença nos mais diferentes cenários, incluindo operações em territórios em conflito, permite o rápido levantamento de necessidades, a mitigação de potenciais limitações e a confiança necessária para se ter a certeza que correrá tudo bem.
Já com o pessoal médico a fazer parte da equipa, pouco falta para se sentir o cheiro a JP-8 no Samouco e os zoar dos motores do C-130H a ecoarem na pradaria. Plano de voo: “Check”; headsets: “Check”; combustível: “Check”; Checklist: “Check”.
Siga para a RCA!

A descolagem

MEDIC20, rodas no ar, descolado do Montijo com destino à RCA, o relógio está a contar. A rota aponta a sul, são 9 horas, por cima da inóspita África. As autorizações diplomáticas, que permitem ao C-130H cruzar os céus estrangeiros, foram conseguidas a tempo. O continente mãe, ainda rudimentar no que toca a ajudas à aviação, controlo radar e comunicações, torna-se o terreno de excelência para o Hércules.

 
 
África
A rota é longa, e o cansaço é recompensado pelo nascer do sol a refletir nas areias do deserto.

A luz refletida na areia dourada causa aquele ardor nos olhos de quem já está acordado há umas horas, mas a tripulação “descansada” vai acordando para assumir agora a missão. A gestão do cansaço é fundamental para manter a concentração. O zoar dos motores embala agora aqueles que ainda não haviam dormido. O barulho já nem se ouve.

Para os que agora navegam o C-130H, o pensamento é “já faltou mais”.... E ao longe o amarelo do deserto vai dando lugar ao surpreendente verde.

Há, contudo, preocupações em aberto. O camarada Comando iria ser transportado por helicoptero de Mobaye para Bangui, para posteriormente ser evacuado para Portugal. O “plano B” seria levar o C-130H directamente para Mobaye, numa operação com outras contingências. As dúvidas sobre se o militar estava efetivamente a ser transportado para Bangui são esclarecidas pelo Comando Aéreo (CA) por rádio HF: O militar já partiu de Mobaye e o destino do C-130H é Bangui.

Entretanto as condições meteorológicas encontradas levam a um consumo de combustível ligeiramente superior ao previsto, e começam a condicionar a capacidade de atingir o alternante. Estudam-se novamente as condições meteorológicas e as cartas de ventos. Decide-se então aproveitar os ventos favoráveis em altitude, poupando combustível com pequena penalização no tempo de voo.

No compartimento de carga, vai-se preparando a chegada do militar ferido. O equipamento médico é disposto na posição mais adequada, e os tripulantes constituem e distribuem os kit de protecção individual. O cenário está longe de ser pacífico, e depois do trem no chão, não haverá tempo a perder.
 
O destino
O destino já aparece no horizonte. Bangui é um Aeroporto Internacional e foi possível transportar o militar até o mesmo. O terreno já não é novo para a aeronave nem para alguns elementos da tripulação. As dicas são passadas por aqueles que aqui já passaram: a chegada para a pista 17 é praticamente uma entrada directa, a rolagem será feita por taxiways estreitos, será necessário atravessar portões e o estacionamento é efectuado numa placa completamente ladeada por contentores.

À chegada ao ponto de descida, correm-se os checklists, pede-se autorização para descer e consegue-se a informação de meteorologia atualizada. A pista em uso é afinal a 35, servida por um ILS, ao qual se chega percorrendo um arco, mas as DME (que indicam a distância ao campo) “estão fora”. Sintonizam-se as novas ajudas. Utiliza-se o radar e a inércia como informação de distância. Faz-se o briefing de aproximação e aterragem, e depois da pergunta “Dúvidas ou Questões?” surge o silêncio que só quer dizer umas cois: a tripulação está pronta! O Trabalho em equipa é fundamental e é demonstrado na complementaridade e cumplicidade entre os tripulantes. A operação é segura mas expedita. A aproximação é feita a velocidade mais alta, e já são várias as aeronaves que se acumulam atrás do Hércules. Aeronave configurada mais perto da pista, confirmação de trem e flaps, autorização para aterragem na pista 35 é recebida.

À chegada, o destacamento francês aguardava para prestar todo o apoio. As dicas ainda em rota vão agora surgindo. O portão que dá entrada para a placa é apertado e parece feito para um C-130 passar à justa. O taxiway é mesmo estreito.... A tensão termina quando a aeronave se imobiliza e corta motores. E este é o mote para começar a preparação para o regresso. O intuito é ficar o menor tempo possível no solo, e é fundamental abastecer o mais cedo possível. Feitas as contas, 60.000 libras (lbs) de combustível permitem uma chegada ao destino com cerca de 10.000lbs.

Somos calorosamente recebidos pelos militares que ficaram para trás a garantir a manutenção do Campo. Os restantes estão envolvidos em operações de risco.
 
 
 
 
A rotação

Mais um contratempo: ao contrário do previsto, era necessário deslocar a equipa médica ao Hospital ROLE 2 sérvio para proceder à transferência do paciente. A FND tem para o médico e o enfermeiro vindos de Portugal um transporte em viatura blindada, pronta para enfrentar os 30 minutos de viagem para cada lado. A equipa médica apronta-se. Colete, capacete, arma e repelente – o mosquito também é um inimigo terrível numa zona de África onde doenças como a Malária estão ainda muito presentes.

É informada a cadeia de Comando, redefine-se a fita de tempo e avalia-se o impacto deste atraso. Entretanto, alimenta-se o corpo, a última refeição já vai longe. Somos também convidados a tomar um café expresso nas instalações da nossa FND, um pequeno conforto numa missão que já vai longa, e ainda se encontra a meio.

Alinha-se a partida. A aeronave está finalmente abastecida, e sabe-se agora que o militar ferido está a minutos da placa.

São distribuídos os últimos apertos de mão com votos de boa missão aos camaradas do Exército e da Força Aérea que ainda permanecerão no teatro de operações. Os tripulantes vão ocupando a sua estação e a ambulância aparece finalmente.

O camarada dos Comandos ferido em combate é entretanto deitado numa maca, e os equipamentos de monitorização médica são ligados ao paciente. É clara a força e o orgulho ferido. É evidente que apesar de ferido, este militar não queria abandonar os camaradas que permanecem na RCA. Mas é também evidente que os cuidados que poderiam ser prestados naquele cenário não permitem salvaguardar a integridade física daquele militar.

À equipa médica, depois da curta viagem por via terrestre, fogem as palavra: “É uma miséria que nem imaginam”.
 
 
 
 
O regresso
O pensamento aponta agora a Norte. Está na hora de completar a missão e seguir para “casa”! A descolagem faz-se ao final da tarde, que rapidamente dá lugar à noite. A lua e as estrelas são novamente a companhia. Serão novamente 9h. Será novamente uma tripulação a navegar e outra a descansar. Desta vez, é a estrela polar que aponta o caminho para casa, cumprindo a sua missão centenária, o regresso parece (mas não é) mais rápido. Qual motor extra, a vontade de entregar o militar ferido aos cuidados especializados parece dar mais impulso à missão. Não tarda e estamos no ponto “TARIK” e a falar com os controladores espanhóis. Já falta pouco!

A coordenação da chegada é novamente efetuada com recurso ao rádio HF. À “FAP Lisboa” , é passada a intenção de seguir para o Montijo e é solicitada informação de meteorologia. Prevê-se uma aproximação por instrumentos para a pista 26. O Montijo é a nossa casa, e a aproximação não apresenta surpresas.
 
 
A chegada
Após a aterragem, a aeronave segue pelo taxiway C e B2 para a Placa Norte. Já foi possível visualizar os “pirilampos” azuis da ambulância, que representam o fim da nossa missão. Parada a aeronave, parking brake puxado, mais de 2 minutos em ground idle e shutdown all engines. O último checklist é agora feito com o apenas o ruído do APU. Luz verde da fonte de energia do solo, corta-se o APU e faz-se agora silêncio. O nosso camarada, que carregou o emblema português e das Nações Unidas em África, está agora no país que o criou, junto daqueles que o viram nascer.

As lágrimas dos pais ao beijarem o filho e o sentimento de que o nosso camarada ficará bem, são para nós sentimento de MISSÃO CUMPRIDA!

Foram ao todo perto de 20 horas de voo, distribuídas por pouco mais de 26 horas desde ativação inicial até aterragem final, percorrendo-se mais de 5.000 milhas.

É agora tempo de debriefing. É analisada a missão e são identificados possíveis pontos de melhoria e lições para as próximas missões. Ainda há tempo para partilha de histórias e experiências com os que os esperam no edifício da Esquadra. Já é de madrugada e o sol não vai esperar.

É tempo de a equipa se separar e cada um seguir para o seu recanto.

O dia foi longo, o corpo ressente-se, mas a mente conforta-se com o pensamento transversal a todos os Bisontes:

- Hoje, como sempre, estive e estarei.

Onde necessário, quando necessário”!